domingo, 17 de outubro de 2010

A Serpente do Deserto

Tinha vontade de lhe contar que também estive em Merzouga, embora não tenha andado de camelo, o que equivale mais ou menos a ir a Roma e não ver o Papa, ou que o aspecto mais impressionante de toda aquela paisagem tenha sido o facto de olhar em volta e conseguir ver sempre a linha do horizonte. Das fotografias que tirei voltado para cada um dos pontos cardeais.
Dizia-me uma vez um professor que eu tive, apaixonado por fractais, que os desertos são os locais por excelência de construção de religiões. As maiores religiões monoteístas tiveram a origem nas suas areias, o que não deveria ser de estranhar, pois o nosso mundo apresenta muitas distracções para os sentidos e o ambiente árido e inóspito do deserto torna-se ideal. Ideal para uma pessoa estar sozinha com ela própria e encontrar a resposta dentro de si. Aquela resposta que as pessoas no quotidiano não ouvem, porque estão imersas em ruído e cujo pensamento está a ser constantemente atropelado por solicitações de outros seres, também eles em busca de uma resposta, mesmo que não a tentem ou não a queiram encontrar.

Não nos convém aproximar muito dos tufos de vegetação. A maior parte das coisas que mordem estão aí escondidas. Enquanto isso, observava o trilho de pegadas de um fenec - "C'est un petit renard!", e eu - "Oui, je sais ce qu'est un fenec!". O meu raro sorriso de boa disposição era revelador disso mesmo. Da certeza de que o feneco, como se diz nesta língua, nunca ser motivo de conversa em lado nenhum português e da maior parte das pessoas deste país nem sequer saber que tal animal existe. Assim desconhecendo, torna-se mais fácil odiar o nosso mundo e por extensão nós próprios. Assim desconhecendo, torna-se mais fácil deixar que outras pessoas se alimentem de nós e nos transformem em escravos, porque a imensidão do deserto não faz sentido nenhum para essas pessoas que tentam viver enclausuradas em ambientes claustrofóbicos, como casas diminutas, e que saem para se tentarem divertir em bares diminutos e que provavelmente nem conhecem o vizinho do lado, tornando-se assim mais fácil. Mais fácil odiar.

O fenec só sai à noite. Por razões óbvias, é um animal de hábitos nocturnos como a maior parte das criaturas do deserto e isso desconsolou-me um pouco, pois não iria ter oportunidade de o ver. Já estava entre as areias do deserto desde antes do amanhecer, após ter
ouvido o adhān em Erfoud ainda deitado, e de, em seguida, percorrer num Defender o caminho até à imensidão.
O nascer do sol é uma experiência quase mística e não me ocorre mais nenhum adjectivo para descreve-la. Acredito que qualquer pessoa reavalie determinadas considerações da sua vida depois de ter experimentado o deserto. Na realidade, o imenso é algo que muda a consciência de uma pessoa mesmo que esta não esteja preparada para isso, e geralmente nunca está.
A serpente detentora do
pensamento estava lá comigo. Os cornos da víbora do deserto cortavam Cronos, o tempo, pois o seu serpentear debaixo dos grãos desse oceano de areia era como um deslizar cortante que tocava em todos os seres humanos, grãos desse oceano chamado consciência universal. Ainda hoje guardo os grãos dessa areia.

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