Senti-me como que absorto pelos meus pensamentos passados para papel. Precisava de entender o facto do toque ser frio e absoluto como uma caligrafia bem estruturada.
O caminho descia por uma escuridão cada vez mais intensa, e nem um deus da morte conseguiria imaginar uma escuridão mais negra do que o preto, mas ali estava ela à minha frente. No entanto conseguia vê-la, a essa escuridão, como se a ira de Beleth me tivesse amaldiçoado durante a sua rebelião frustrada e agora o olho monstruoso, que actua como espião desse demónio, conseguisse por sua vez, também ver o meu fracasso. O fracasso em conter as minhas emoções.
Eu, que deveria tomar decisões perfeitamente racionais, tal como se espera de um ser da minha raça. Mas em vez disso, deixava-me inebriar pelas canções de Megara.
Aproximei-me do fim do caminho. Pequenos cristais reluziam à minha volta, abatendo um pouco a escuridão antes desenhada, até que vi uma figura imponente encimando uma barca funesta, que lentamente se deslocava para a margem.
Essa figura era um velho andrajoso que vociferava, num clamor que enchia o mundo tenebroso onde nos encontrávamos, sobre o facto de eu não ter motivo ou razão para estar ali, diante dele. As sombras dos mortos gemiam em prantos indescritíveis ao nosso lado, embora nenhuma delas se atrevesse a colocar um pé que fosse nas águas corrosivas do Estige.
Eu sabia que o barqueiro era irascível, mas sentia-me determinado em prosseguir o meu caminho. Necessitava de encontrar os três juízes. Talvez Éaco ou Minos me pudessem aconselhar sobre a melhor opção a tomar, ou que dissessem algo que atenuasse a minha miséria. Nem que para isso tivesse de ir a um lugar de onde nenhum ser vivo tivesse estado antes, exceptuando talvez os heróis lendários.
- Só transporto sombras que tenham um óbulo para fazer o pagamento! Dizia-me com gravidade, Caronte. - Para além disso, tu não estás morto... o teu lugar não é aqui!
- Também não estou propriamente vivo! Respondi. - Quanto ao pagamento, penso que só se apropria às sombras.
Lembrei-me que Orfeu tinha tocado uma canção emocionada com a sua lira, para convencer Caronte a transporta-lo, aquando da sua descida aos infernos em busca da sua amada Eurídice. Mas apesar de, tal como Orfeu, eu deter o conhecimento da serpente, aquilo que eu pudesse tocar dificilmente convenceria Caronte. Uma vez que se assemelhava mais ao ribombar de um trovão, do que às linhas melódicas e perfeitamente harmoniosas do filho de Apolo.
Ao inclinar-se na minha direcção e olhando mais de perto para a minha cara, a expressão do mórbido barqueiro alterou-se, revelando surpresa. Acedeu a fazer a travessia e atravessámos as águas negras do rio do ódio sem este ter proferido qualquer palavra.
Ao chegarmos ao Mundo Inferior propriamente dito, agradeci ao barqueiro, que já se encaminhava para a outra margem e voltei-me para subir uma leve elevação que dava para uns portões lúgubres e estudar a melhor maneira de encarar o demónio Cérbero.
Este demónio do poço podia ser aterrorizante e bastante feroz. No entanto, recebeu-me como um cão que recebe o dono, e foi então, que finalmente percebi a razão da surpresa de Caronte.
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