As redes sociais foram invadidas em força pelo "Portugalnomics: Ep.1" (pelos vistos tem continuação) que posteriormente desaguou nos media tradicionais. A peça gráfica que presumo se pretendesse leve e bem humorada, foi levada a sério por muita gente.
Muitos aspectos deste vídeo fizeram-me lembrar a experiência que tive com alguns estudantes escoceses de Erasmus, que se gabavam da contribuição que os escoceses deram ao mundo, desde o golfe, da televisão, do telefone, da máquina a vapor, da penicilina. Em suma, os escoceses tinham inventado quase tudo. Este tipo de mitologia faz parte do meme cultural dos povos.
As referências a Cascais e ao Estoril são exageradas, embora tal fosse de esperar tendo em conta o patrocinador. O vídeo está engraçado. Pelos vistos, as pessoas que se preocupam muito com essa coisa dos "factos" não demonstram sentido de humor. Mas ia lá eu perder a oportunidade de estragar a diversão dos outros. Aquilo tem tantos erros que até dá para escolher os favoritos.
A origem da palavra japonesa "arigatō".
Já tinha tido esta discussão com um conhecido meu. Este é um erro bastante comum e até existem livros editados que fazem referência a este mito, que estudos posteriores vieram a desmentir.
Esta palavra já existia antes dos portugueses chegarem ao Japão.
Arigatō (有り難う, embora também possa ser escrito em hiragana ありがとう) deriva do adjectivo arigatai, uma variação moderna de arigatashi (有り難し) que por sua vez é composto pelo verbo ari (有り, ser) e pelo adjectivo katashi (難い, difícil). A acepção é a de algo como "o mais difícil" ou "coisa rara", no sentido de algo que merece ser agradecido. Não existe nenhuma relação com o português "obrigado", que tem o mesmo significado.
Existem contudo dezenas de palavras japonesas com origem no português, que são chamadas de garaigo (palavras emprestadas) e são sempre escritas em katakana ou romaji. A minha favorita é pan (パン, pão).
O primeiro país no mundo a abolir a pena de morte.
Este é outro dos mitos bastante divulgados. A primeira vez que a pena de morte foi abolida foi na China, entre 747 e 759, durante a dinastia Tang. Mais tarde, devido à influência dos sacerdotes xintoístas, a pena capital foi abolida no Japão em 818, sendo reintroduzida em 1156.
No ocidente, Leopoldo II de Habsburgo, aboliu a pena de morte no Grão-Ducado da Toscana em 30 de Novembro de 1786. A República Romana, um estado que existiu apenas durante o ano de 1849, após o Papa ter fugido de uma revolta popular, aboliu a pena capital durante a sua curta existência. Este último movimento veio a inspirar a abolição na Venezuela, em 1863, e em São Marino, em 1865. A última execução em São Marino tinha sido em 1468.
Portugal aboliu a pena de morte em 1867, após ter tentado por duas vezes, sem sucesso, em 1852 e 1863. Iriam passar cerca de cem anos até que o próximo país, neste caso o Reino Unido, abolisse a pena capital. Talvez o mito esteja relacionado com isso.
Aquilo que roubámos a árabes e judeus e não queremos admitir.
A vela latina é possivelmente de origem romana, e a sua difusão entre nós deve-se aos árabes do Mediterrâneo, que a adoptaram após a conquista do Egipto e do Magrebe. Portugal conquistou os Algarves (do árabe الغرب al gharb, o ocidente) e acedeu a este e a outro tipo de tecnologias, que mais tarde a historiografia tentou apagar dos seus verdadeiros donos.
O "maritime compass" referido no vídeo deve ser a bússola marítima. Em inglês designa-se por dry compass. Talvez seja um problema de léxico. Não convém traduzir as coisas por afinidade.
De qualquer modo, a bússola marítima não foi inventada pelos portugueses. O crédito desta invenção vai para Flavio Gioja, um velejador de Amalfi, cidade pertencente à então República de Pisa. Embora todo o conhecimento técnico que permitiu o desenvolvimento desse tipo de instrumentos esteja fortemente enraizado nos astrónomos do Al-Andalus, como al-Zarqālī, e nos judeus sefarditas. Os médicos referidos no vídeo eram judeus.
Os europeus já sabiam que os gregos eram capazes de contabilidade criativa. Com este vídeo, os finlandeses ficam a saber que os portugueses são capazes de historiografia criativa.
Mal posso esperar pelo Ep.2 para ver se continua a irritar a intelectualidade bem pensante cá do burgo. Queriam eles que algo Made in Portugal não estivesse cheio de erros. Os snobs do Estoril não se devem estar a importar muito com isso e os finlandeses também não.
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