sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Purgatório

“Dream Sequence” por Christopher Kenworthy

Sonhei. Talvez anteontem. Andava com o espírito pelas ruas da amargura e penso que terá sido um movimento irreflectido. A maneira do meu cérebro expurgar aquilo que está a mais na minha cabeça. Como quase nunca me lembro dos sonhos, tenho sempre a ideia de que não sou humano e que não tenho essa capacidade. Somente quando as insónias me dão uma folga e eu consigo acordar, lembrando-me de que estava a ver um fluxo de informação neural, é que me dou conta que existe um animal dentro de mim. Os restantes vertebrados também sonham. Sonham com desejos básicos que implicam a sua própria vivência sobrevivente, embora essas memórias não sejam inteligíveis para os humanos.
A partir de um certo grau de consciência, o sonho é possível. Isso acontece mesmo em organismos artificiais ou em máquinas, a partir do momento em que a primeira centelha de vida consciente as anima. Daí que o termo anima em latim, que designa a alma, venha dar origem a palavras como "ânimo" e "animado", no sentido de designar o princípio que fornece força vital aos vários seres.

De volta à realidade tespiana. A minha absoluta capacidade de procrastinar a minha vida até ao mais ínfimo pormenor ameaça corroer-me por dentro, embora essa mesma procrastinação me impeça de fazer qualquer coisa em relação a esse assunto.
Tento encontrar algum sentido na realidade, através desse artefacto
escravocrata chamado televisor e chego à conclusão que no topo da hierarquia social existe um ser ubíquo. Esse está em seis canais televisivos ao mesmo tempo, dizendo as banalidades demagógicas que já se sabia que iria dizer, sendo que a mais ofensiva para a minha própria inteligência e suponho eu, para a maioria dos portugueses que a tal assistem, é a promessa da contenção dos gastos.

Aquilo com que eu sonhei foi com algo que não existia, improvável de vir a existir e agora, devido à minha própria vontade, totalmente impossível de vir a ocorrer. Foi um mecanismo de defesa da minha sanidade emocional, tal como estas palavras, que pacientemente e obsessivamente aqui digito.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Espargata

Sasha Cohen

O que se pede aos portugueses é que estes tenham a capacidade de se conseguirem esticar. Claro que se poderia vender os submarinos recém-comprados, trazer as missões militares de volta do estrangeiro, acabar com o dissimulado offshore da Madeira, com o
salvamento e benefícios fiscais de entidades bancárias, com as parcerias público-privadas, com as empresas municipais supérfluas e com os estudos redundantes de consultadoria.

Poder-se-ia argumentar com a falta de dinheiro a quebra de qualquer tipo de compromisso, mas é mais fácil sangrar os mais fracos, que é o que fracos líderes melhor sabem fazer.

sábado, 23 de outubro de 2010

Karma imediato

Esta semana foi surreal. Desconheço a razão porque me estou sempre a cruzar com raparigas que gostam de brincar com o fogo. Se é a inerente estupidez da raça feminina a causa deste tipo de atitude imatura, ou se existe alguma pulsão magnética da minha parte, que me atrai para esse tipo de pessoas, é algo que não consigo explicar.
A juntar a este problema da coronária, que se resolve com uma atitude racional, foi assistir à consequente desumanização de corações e almas devido à informação e à tecnologia, transformando os indivíduos em armas de destruição maciça, através de uma escolha criteriosa de alvos pessoais.
O ego é determinante naquilo que gostamos ou o que não gostamos. A programação individual ajuda o indivíduo a sobreviver, e numa lógica mais complexa, faz com que uma pessoa tenha um determinado peso na sociedade, segundo os amigos que tem ou que deixa de ter.
O entranhar de uma determinada máfia no tecido artístico e cultural do país tornou a premissa principal na necessidade de pertencer a uma capelinha, onde estão os nossos amigos. Aqueles que nos ajudam, independentemente do nosso talento, uma vez que estas personalidades são egocêntricas e deixaram de ter noção da realidade em que vivemos.

O que nos leva à questão do elitismo. Se a massificação de um produto pode ser quase sempre nefasta para a qualidade do mesmo, a selectividade, ou pior do que isso, a falsa selectividade consegue produzir resultados ainda piores. Por elite entende-se um grupo restrito de indivíduos, dominante no interior de uma sociedade e que detém um estatuto privilegiado, motivo de inveja por quem se situa num patamar inferior.
Mesmo que num momento inicial, o ego jure que não vai modificar o seu comportamento ou a sua postura, a venda da alma ao Diabo e o mel sedutor que este oferece conseguem abalar a postura mais estóica. No fundo, todos queremos aquilo que criticamos, e no fim de contas, todos criticamos aquilo que já fizemos. Criticamos quem canta em inglês, apesar de já o termos feito anteriormente. Criticamos as máfias artísticas, mas vamos lá beijar-lhes o rabo e até sorrimos. Criticamos o estado a que o país chegou, mas é tudo conversa de café, e depois dos nossos quinze minutos de indignação, vamos dormir, que amanhã é outro dia.
Criticamos porque não queremos fazer mais nada e só isso nos resta. Quando finalmente formos chamados à elite, essa grande vaca, cujas tetas alimentam uns poucos privilegiados, ficaremos satisfeitos e encontraremos outra coisa qualquer para criticar suavemente.

Uma laranjeira sofria anualmente com as larvas da mosca da fruta. A partir de uma determinada altura, o dono resolveu não regar os ramos da árvore, como era prática comum, nem usar o aparentemente inútil pesticida. A dita árvore começou estão a apresentar um conjunto elaborado de teias de aranha em quase todos os ramos. As aranhas perceberam que naquele local havia algo para se alimentarem e controlaram a população de moscas, restabelecendo o equilíbrio ecológico, o que veio contribuir para uma safra de laranjas sadias.
As melhores soluções são muitas vezes as mais simples, e quem faz jogos desnecessários por vezes dá-se mal.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Cortesia

As cortes medievais estavam associadas ao comportamento educado, mas também à beleza. A palavra corte, que designa a residência de um príncipe, deriva do latim "cortem" (pátio fechado) a partir de "co" (junto) e "hortus" (pátio).
A palavra veio dar origem a cortesia, corte (no sentido de cortejar uma rapariga) e a locais fechados, como aqueles onde se situa os tribunais (inicialmente presididos por um príncipe) ou onde se praticam desportos, como o ténis (court).

Hoje, uma jovem sorriu para mim quando eu lhe agradeci, depois dela parar o carro numa passadeira para eu passar. Quem é que disse que o cavalheirismo já não existe?