sábado, 5 de março de 2011

A festa da carne

Não entendo a razão do ódio que certas pessoas têm pelo Carnaval. A frase popular que eleva o facto de ninguém levar a mal, é apenas uma chamada de atenção para os excessos que se cometem, uma vez que esse é o verdadeiro espírito da data. Claro que qualquer pessoa leva a mal se for vitima de uma brincadeira mais idiota, uma vez que a serenidade cristã é algo que já não abunda na nossa sociedade. Mas o Carnaval é o excesso, uma vez que este serve para libertar as pulsões (é verdade, muitas vezes sádicas) do ser humano antes do recolhimento da quaresma.
Nos meus tempos de puto rebelde (mas será que alguma vez deixei de o ser?) esta data era mais agressiva na questão da deambulação alcoólica do que, por exemplo, a noite de final de ano, ou qualquer outra noite do ano, para esse efeito. A razão disso acontecer talvez esteja ligada às expectativas de desgraçamento inerentes ao Ano Novo, comparadas com as do Carnaval.

O Carnaval original português, o dos caretos, de forte conotação com os primitivos rituais de fertilidade, está em desaparecimento, embora ainda resista como herança cultural. Mesmo o Carnaval popular do século passado foi substituído por uma versão mais plástica e asséptica, que perdeu todo o seu sentido. Onde estão o ódio e as frustrações que as pessoas tentam exorcizar, se se chega a casa sem se estar imundo ou de cabeça partida?
Como se trata de uma festa visceral, dos prazeres da carne, o povo que veio a formar os brasileiros tratou de a levar ao limite da grandiosidade ao som do samba. O Carnaval de Veneza, mais refinado e civilizado, e onde os prazeres proibidos se escondem atrás de máscaras, biombos e dissimulação, não tem a espectacularidade quase doentia da celebração do corpo do seu congénere do Rio. Qualquer um que se lembre da Xuxa no topo do carro azul e branco da Beija Flor, algures nos anos noventa, ou mais recentemente, do tapa sexo virtual da Viviane Castro, sabe que este é outro tipo de carne.

2 comentários:

  1. Lamento mas não concordo contigo, o Carnaval brasileiro baseia-se numa sexualidade mais gráfica, no mostrar a carne, mas o Carnaval de Veneza é o verdadeiro representante da quadra. As pessoas usam máscaras para poderem encarnar por um dia as suas fantasias, normalmente ditas anormais e até patológicas. A máscara, ou o anonimato, serve para libertar o individuo das "normas sociais" vigentes (que é o mesmo que dizer dos medos, vergonhas, tabus, juízos, etc...), nesse aspecto o Carnaval de Veneza assemelha-se mais às festividades pagãs que o originaram. Falaste do Carnaval em Portugal, o dito tradicional (o que quer que isso queira dizer). Os caretos de Podence não são uma personagem do Carnaval per se, outras festividades há em Trás-os-Montes que obedecem ao mesmo sistema (jovens normalmente mascarados, "autorizados" pela comunidade em que estão inseridos a participar numa "loucura"colectiva. Este era o período em que rapazes e raparigas podiam conviver. No resto de Trás-os-Montes (sobretudo no planalto mirandês) chamam-se a essas festividades as "Festas de Inverno"(onde o Carnaval está inserido). Era um período de excessos após aquilo a que os antropólogos chamam de morte (= Inverno). No Inverno a comunidade fecha-se sobre si própria, o convívio resume-se à familia, os recursos escasseiam, o trabalho no campo é reduzido ao mínimo...(a infertilidade dos campos associada com ideias de morte). Para superar estes obstáculos as comunidades tiveram de "criar" mecanismos que possibilitassem e facilitassem o convívio inter-familiar, que reforçasse os laços entre a comunidade, que quebrasse o tempo morto e simultaneamente os fizesse lembrar da fertilidade que está para vir. Nada melhor que a juventude em excessos para tal. As religiões celto-ibéricas pagãs seguem este padrão e frequentemente fazem menção a figuras demoníacas ou dionisíacas. Desculpa o testamento...estudei este assunto a fundo e fiz até trabalho de campo sobre ele na bela aldeia de Vila Chã da Braciosa (no planalto mirandês) onde fazem uma festividade de nome "A festa da Belha". Pode pesquisar mais sobre o assunto lendo Benjamim Pereira (um etnográfo que tem se esforçado muito para entender as Festas de Inverno e o uso recorrente de máscaras nas mesmas). O Carnaval que vemos no Brasil, foi certamente levado pelos Portugueses, e alterado para se adaptar a um novo cenário social e ambiental (onde não há inverno, por exemplo). A exposição do corpo quase total poderá dever-se ao facto da religião católica lá nunca ter conseguido (pelo menos na população indígena e africana) "amarrar" as dinâmicas sexuais.

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  2. Sim, sem dúvida! Isso tudo está correcto. Eu apenas tentei não teorizar muito sobre o assunto, mas agradeço a achega.

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